segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Já jaz muito tempo que nós corremos!

Nos últimos anos a popularidade da corrida como meio de condicionamento físico e emagrecimento cresceu vertiginosamente. É cada vez maior o número de corredores e grupos de corrida, o número de provas aumentou muito e podemos dizer que praticamente todo final de semana temos algum tipo de prova [veja aqui].




A corrida se tornou uma das atividades mais praticadas no mundo depois que nos anos 70 o Dr. Kenneth Cooper iniciou uma série de pesquisas que mostraram que a corrida poderia ser um efetivo meio de prevenção das doenças relacionadas ao sedentarismo. Atualmente a expressão "cooper" é sinônimo de corrida.

Porém nós como espécie Homo corremos a muito mais tempo. Existem indicações arqueológicas de que nossa estrutura anatômica vem sofrendo alterações relacionadas com a corrida desde o período Plistocénico [saiba mais aqui] que compreende o período entre 2,5 e 11 milhões de anos atrás.

Estas alterações foram encontradas em diferentes hominídios como o Homo Erectus, Homo Habilis e Homo Sapiens. Entre essas características anatômicas temos:

  • Surgimento do ligamento nucal para estabilização da cabeça [1]
  • Dissociação entre a cabeça e cintura escapular relacionada com a rotação do tronco e da cabeça [2]
  • Tórax e pélvis mais estreitos o que provavelmente facilita a contra rotação quadril e cintura [3, 4]
  • Expansão da área lombar central para redução do estresse [5]
  • Dedos do pés mais curtos o que possibilitou maior estabilização dos movimentos dos pés [6]
  • Tendão de Aquiles mais longo que tornou a ato de correr mais eficiente [7]
  • Arco plantar - estabilização e energia [8]
  • Diminuição do colo do femur - redução do estresse Homo Sapiens [9]  
Algumas populações usam a corrida há centenas de anos, seja para deslocamento ou na busca de alimento. Esta metodologia de caça é chamada de caçada persistente [10], esse tipo de caça é realizada em grupo e os caçadores correm por distância que variam de 17 até 35 km, com duração de 2-6 horas e mantem uma média de velocidade entre 6-10km/h [11]. Entre as populações que usam essa pratica temos os Paiutes e Navajos no Sudoeste Americano, Aborígenes Australianos, Tarahumaras no México e os habitantes do Kalahari na África [11].






Nossos ancestrais Homo e as populações como os Tarahumaras não faziam ou fazem uso das "modernas tecnologias" que os "corredores atuais" utilizam. Entre essas tecnologias estão os calçados esportivos.




Os Tarahumaras usam sandálias produzidas por eles mesmos, como da foto a seguir.



Atualmente temos uma infinidade de tênis de corrida, como um um número ainda maior de tecnologias. Maior capacidade de absorção de impacto, modelos que são mais adequados a diferentes tipos de pés, sistemas anti torção, sistema air, sistema wave e etc.





Junto com o crescimento das "tecnologias" temos o crescimento dos preços, se vocês acessarem os sites de venda de tênis de corrida ou forem até um aloja de calçados poderão se deparar com preços que podem chegar ou ultrapassar a casa dos R$ 500,00.

Uma pergunta importante deve ser feita! Toda essa tecnologia dos tênis de corrida é importante para uma melhor desempenho ou menor risco de lesões? 

Uma das questões mais citadas para o uso de calçados de corrida com alta tecnologia é a chamada pronação do pé durante o período de contato com o solo. A pronação é também conhecida por inversão, onde pé "gira para dentro' em seu eixo longitudinal, dependendo de qual é o movimento do conjunto pé/tornozelo é possível classificar o tipo de pisada.



Como vocês podem ver na figura anterior [12] a pronação é mostrada na parte C e D da figura. A parte A mostra a supinação [giro do pé para fora] e a parte B mostra uma pisada neutra.

É muito comum encontrarmos afirmações de que a pronação está correlacionada com uma série de lesões, chegando ao ponto de algumas pessoas escreverem textos como o que vocês podem ver neste link, que tem o título de "Maldita Pronação".

Porém quando investigamos essa questão mais profundamente [através da ciência baseada em evidência] parece que esse tipo de movimento do pé e o uso de calçados com tecnologia para diminuir esse movimento [pronação] não demonstram influência sobre o risco de lesões. 

Um trabalho [13] realizado com 947 corredores durante um ano relacionou  tipo de pisada com a incidência de lesões, a conclusão foi de que "os resultados deste trabalho contradizem a crença de que a pronação moderada está correlacionada com o aumento do risco de lesões em corredores iniciantes usando calçados de corrida comuns sem tecnologias para evitar a pronação". Um resultado muito interessante deste trabalho foi que a incidência de lesão para cada 1000 km percorridos foi menor nos corredores com pisada pronada do que nos corredores com pisada neutra. Ou seja, exatamente ao contrário da crença predominante de que corredores com pisada pronada tem mais chance de lesões.

Acredito que assim como abordamos outras questões ligadas ao treinamento e alimentação, usar uma abordagem evolutiva é vital para determinarmos qual a real função de um calçado de corrida. Se considerarmos que corremos desde antes do desenvolvimento tecnológicos dos tênis de corridas, parece prudente considerarmos que eles não são tão importantes assim.

Nenhum calçado como nós conhecemos hoje foi usado antes de 1844, quando Charles
Goodyear patenteou o processo de vulcanização da borracha. No ano de 1907, a Companhia Spalding criou o primeiro calçado esportivo para basquete e em 1917 a Converse cria os calçados conhecidos atualmente como "All Star". Os tênis de corrida surgiram na década de 1960 e 1970 com a New Balance e a Nike.




Existem fortes evidências científicas de que durante a evolução de nossa espécie [Homo Sapiens] nós fazíamos uso da corrida como meio de deslocamento e caça [14] e fizemos isso de pés descalços ou usando calçados primitivos [15]. Essas evidências científicas aliadas ao surgimento da corrida de pés descalços [conhecida como barefoot running] e aos trabalhos [16-19] avaliando essa técnica como meio de prevenção e tratamento de lesões, fazem com que uma dúvida seja levantada sobre qual é a real importância dos tênis de corrida.

Considerando minha experiência pessoal e como treinador posso dizer que o mais importante é a técnica de corrida e não o calçado utilizado e também que um corredor que domine a técnica adequada para poder correr descalço terá uma melhor desempenho e menor risco de lesões, principalmente quando usando calçados de corrida.

Outro ponto importante é que se é possível correr com os pés descalços ou com sandálias primitivas o valor do tênis de corrida é menos importante.

Para finalizar deixo a informação de que Abebe Bikila, talvez o maior maratonista de todos os tempos, conquistou o recorde mundial dos 42km com o tempo de 2hs 15min 17seg de pés descalços.


Abraços...
Carlinhos

Referências
  1. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=nature+412+178-181+2001
  2. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=physical+anthropology35+185-215+2002
  3. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/0047248488900565
  4. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=science+284+65-71
  5. http://www.jstor.org/discover/10.2307/2742907?uid=3737664&uid=2&uid=4&sid=21103426829937
  6. http://jeb.biologists.org/content/185/1/71.long
  7. http://jap.physiology.org/content/18/2/367.abstract
  8. http://jeb.biologists.org/content/160/1/55.full.pdf
  9. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1469-7998.1980.tb04222.x/abstract
  10. http://en.wikipedia.org/wiki/Persistence_hunting
  11. http://www.mattmetzgar.com/wp-content/uploads/2007/08/persistence_hunting.pdf
  12. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-86922000000200005&script=sci_arttext
  13. http://bjsm.bmj.com/content/early/2013/06/12/bjsports-2013-092202.abstract
  14. http://www.fas.harvard.edu/~skeleton/pdfs/2004e.pdf
  15. http://www.artsci.wustl.edu/~trinkaus/2008-TYD-toes.pdf
  16. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24179586
  17. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24108403
  18. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23850795
  19. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24196492


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